Por Dra. Raquel Gonçalves
Médica Gastrenterologista
Diretora do Serviço de Gastrenterologia do Hospital de Braga e Presidente do Grupo de Estudos da Doença Inflamatória Intestinal (GEDII)
A Doença Inflamatória Intestinal (DII) é uma patologia crónica do tubo digestivo que afeta milhares de pessoas em Portugal e cujo impacto se estende para além do aparelho gastrointestinal. Apesar dos avanços terapêuticos das últimas décadas, muitos mitos e dúvidas persistem, quer entre os doentes, quer entre os profissionais de saúde menos familiarizados com a área da Gastrenterologia.
Com base na experiência clínica e no trabalho desenvolvido no GEDII (Grupo de Estudos da Doença Inflamatória Intestinal), importa clarificar conceitos, orientar a vigilância e reforçar a importância da abordagem multidisciplinar centrada na pessoa.
O que é a Doença Inflamatória Intestinal?
Trata-se de um conjunto de doenças crónicas caracterizadas por inflamação persistente do tubo digestivo. Engloba duas doenças principais: colite ulcerosa, que afeta exclusivamente o cólon, e a doença de Crohn, que pode atingir qualquer segmento do tubo digestivo, da boca ao ânus.
Ambas resultam da interação entre a predisposição genética, os fatores ambientais e as alterações imunitárias individuais. Podem manifestar-se em qualquer idade, embora ocorra com maior incidência entre os 20 e os 30 anos.
Muito mais do que uma doença do intestino
Estas patologias não se limitam ao aparelho digestivo. Apresentam, frequentemente, algumas manifestações extraintestinais que afetam as articulações, a pele, os olhos, o fígado ou a tiroide. A coexistência com outras doenças autoimunes é também comum.
Entre os sintomas mais identificados estão a diarreia prolongada, a dor abdominal, a perda de peso, anemia, a fadiga e a presença de sangue nas fezes. Quando os sintomas surgem durante a noite ou afetam o sono, tornam-se particularmente sugestivos de doença inflamatória ativa. Uma avaliação clínica cuidada permite distinguir estas situações de queixas funcionais benignas.
Quando suspeitar e como agir?
Perante sintomas digestivos persistentes, o primeiro contacto deve ser com o médico de família (especialista em Medicina Geral e Familiar). Este poderá realizar exames laboratoriais iniciais, avaliar a história clínica e, sempre que indicado, referenciar o doente para a especialidade de Gastrenterologia.
A decisão de realizar exames como a endoscopia ou a colonoscopia deve ser ponderada com base em critérios clínicos. Em muitos casos, é possível utilizar marcadores não invasivos, como a calprotectina fecal, para ajudar no diagnóstico diferencial.
Nos casos suspeitos, a referenciação hospitalar é recomendada, não apenas para confirmar o diagnóstico, mas para garantir um seguimento estruturado e eficaz.
A importância de uma equipa multidisciplinar
O acompanhamento destas doenças exige a colaboração de várias áreas clínicas e não clínicas. O enquadramento assistencial mais eficaz integra uma equipa multidisciplinar composta por gastrenterologistas, cirurgiões, reumatologistas, dermatologistas, oftalmologistas, enfermeiros especializados, nutricionistas e psicólogos. Esta articulação permite responder de forma abrangente às múltiplas manifestações da doença, quer ao nível intestinal, quer em órgãos extraintestinais, assegurando uma abordagem mais completa e adaptada a cada situação clínica.
Além disso, este modelo favorece a atuação rápida em situações de agudização, facilita o ajuste terapêutico em tempo útil e garante continuidade e coerência nos cuidados ao longo do tempo. O apoio psicológico e nutricional, frequentemente subvalorizado, revela-se determinante na adesão ao tratamento, no bem-estar geral do doente e na sua qualidade de vida. A gestão partilhada e coordenada entre especialidades é, hoje, uma peça central na abordagem moderna da Doença Inflamatória Intestinal.
A evolução terapêutica das últimas décadas
Os avanços terapêuticos registados nas últimas três décadas transformaram de forma significativa o prognóstico da Doença Inflamatória Intestinal. A introdução progressiva de fármacos imunomoduladores e, mais recentemente, de terapêuticas biológicas dirigidas a alvos específicos do processo inflamatório, permitiu controlar a doença de forma mais eficaz, segura e sustentada, reduzindo a necessidade de corticoterapia e de intervenções cirúrgicas.
Este progresso traduziu-se numa mudança de paradigma. Atualmente, o tratamento não se limita ao alívio sintomático, mas é orientado por objetivos clínicos e biológicos bem definidos, como a remissão clínica, a cicatrização da mucosa intestinal e a prevenção de complicações estruturais a longo prazo. Esta perspetiva permite uma abordagem mais ambiciosa, com impacto direto na qualidade de vida e no futuro funcional dos doentes.
A monitorização regular, através de análises laboratoriais, marcadores fecais como a calprotectina e exames de imagem ou endoscopia, desempenha um papel central na avaliação da resposta terapêutica. Esta vigilância permite ajustar precocemente a terapêutica em caso de perda de eficácia, evitando a progressão da inflamação e os danos irreversíveis que dela possam resultar.
Abordagem personalizada
Cada doente deve ser tratado de forma individualizada. Os fatores como a idade, as manifestações clínicas e o alcance e intensidade da inflamação orientam a escolha terapêutica mais adequada. Quando o tratamento inicial não é eficaz, existem opções alternativas. Os ensaios clínicos permitem testar medicamentos inovadores em ambientes controlados e seguros, oferecendo opções adicionais em casos mais complexos. Este processo de adaptação contínua reforça a importância do diálogo e da confiança entre médico e doente.
O papel ativo do doente
A participação informada e comprometida do doente é hoje reconhecida como um dos pilares fundamentais na gestão bem-sucedida da Doença Inflamatória Intestinal. Compreender que se trata de uma doença crónica, que pode exigir medicação contínua e acompanhamento regular, permite ao doente encarar o tratamento de uma forma mais consciente e responsável. Esta atitude tem impacto direto na adesão à terapêutica, na estabilidade clínica e na sua qualidade de vida.
O envolvimento do doente não se limita à toma dos medicamentos. Inclui a capacidade de identificar os sinais de alarme, relatar sintomas com precisão, cumprir o plano de monitorização proposto e participar ativamente nas decisões clínicas. A relação de confiança com a equipa médica favorece o diálogo aberto, facilita os ajustes terapêuticos e contribui para um percurso de cuidados mais eficaz.
As associações de doentes, como a APDI (Associação Portuguesa da Doença Inflamatória do Intestino) e a ACCP - Associação Crohn Colite Portugal, têm desempenhado um papel relevante neste processo. Através da realização de ações de formação, do apoio psicológico, da realização de eventos públicos e da criação de redes de partilha, estas entidades promovem a literacia em saúde, combatem o isolamento e ajudam os doentes a sentirem-se mais acompanhados e capacitados para gerir a sua condição de saúde.
Alimentação, estilo de vida e fatores agravantes
Embora não exista evidência de que a alimentação seja a causa direta da Doença Inflamatória Intestinal, a dieta desempenha um papel importante no controlo dos sintomas e no bem-estar geral do doente. Durante as fases de agudização, certos alimentos podem agravar o desconforto intestinal, como a lactose, os alimentos ultraprocessados, as refeições com elevado teor de gordura ou condimentos, e as dietas excessivamente ricas em fibras insolúveis.
Cada doente pode apresentar sensibilidades alimentares distintas, pelo que a orientação nutricional personalizada, sempre que possível com o apoio de um nutricionista, é uma ferramenta muito valiosa. Uma alimentação natural, equilibrada, com ingredientes frescos e pouco processados, tende a ser melhor tolerada e mais benéfica a longo prazo.
Paralelamente, o tabagismo é um fator agravante bem estabelecido, sobretudo na doença de Crohn. O ato de fumar está associado a um maior risco de recaídas, menor eficácia terapêutica e a maior necessidade de cirurgia. A cessação tabágica deve ser uma prioridade nas estratégias de intervenção, com apoio psicológico e farmacológico sempre que necessário.
O equilíbrio emocional e a saúde mental são também determinantes. As situações de stress, ansiedade, luto ou depressão podem interferir com o sistema imunitário e desencadear crises inflamatórias. Por isso, recomenda-se a adoção de estilos de vida saudáveis que incluam prática regular de exercício físico, contacto com a natureza, momentos de lazer e estratégias de relaxamento. Uma abordagem holística, que valorize tanto o corpo como o estado emocional, favorece a remissão e melhora a experiência global do doente com DII.
A componente genética e o senso clínico
A Doença Inflamatória Intestinal apresenta uma componente genética reconhecida, com diversos genes identificados como associados à predisposição para o desenvolvimento da doença. No entanto, este fator isolado não é suficiente para justificar um padrão hereditário clássico. O risco genético, embora real, está fortemente condicionado pela interação com os fatores ambientais, imunológicos e do estilo de vida.
Ter um familiar direto com DII, como um pai, um irmão ou um filho, aumenta modestamente a probabilidade de desenvolver a doença, mas a grande maioria dos casos surge em pessoas sem qualquer antecedente familiar conhecido. Por esse motivo, não está recomendada a realização de um rastreio sistemático em familiares assintomáticos, mesmo que exista uma história familiar de doença.
Ainda assim, em contexto clínico, deve existir um grau acrescido de atenção sempre que um doente apresenta os sintomas sugestivos e/ou refere casos próximos de DII na família. Nestes casos, o limiar para investigação pode ser ajustado, permitindo um diagnóstico mais precoce e uma abordagem terapêutica oportuna, caso se confirme a existência da doença.
A prática clínica deve, portanto, equilibrar o conhecimento científico com o senso clínico e a personalização dos cuidados.
Conclusão
A Doença Inflamatória Intestinal (DII) continua a representar um desafio clínico, organizacional e humano. O conhecimento acumulado nas últimas décadas, aliado à evolução terapêutica e ao envolvimento ativo de equipas multidisciplinares, permite hoje um controlo mais eficaz da inflamação, a prevenção de complicações graves e a manutenção da qualidade de vida da maioria dos doentes.
No entanto, o sucesso nesta área depende de um compromisso contínuo com a formação médica, a investigação clínica e a colaboração estreita entre especialidades. É igualmente essencial envolver o doente como parceiro ativo no seu percurso terapêutico, promovendo a literacia em saúde e o acesso a cuidados coordenados e humanizados.
A resposta à DII não se faz apenas com medicamentos ou protocolos. Exige uma visão estratégica, a integração de cuidados e um sistema capaz de garantir um diagnóstico precoce, um acompanhamento estruturado e com capacidade de resposta efetiva em todas as fases da doença. Só assim será possível assegurar, a cada pessoa com DII, um futuro com mais saúde, autonomia e qualidade de vida.
setembro 2025