Por Dra. Catarina Fidalgo
Médica Gastrenterologista
Hospital Beatriz Ângelo
Hospital da Luz
A endoscopia digestiva é um exame amplamente utilizado na prática clínica, mas que continua rodeado de dúvidas e receios por parte da população. A perceção de dor, o medo da anestesia, a preparação intestinal ou a eventual alteração da flora intestinal são apenas alguns dos temas que surgem frequentemente em consulta. Desmistificar estas preocupações é fundamental para melhorar a adesão dos utentes aos exames e garantir diagnósticos atempados e eficazes.
Em colaboração com a Medicina Geral e Familiar, é essencial promover uma abordagem informada e baseada na evidência, respondendo de forma clara às questões mais frequentes.
Dor e desconforto: o que se pode esperar?
Uma das preocupações mais comuns dos doentes é saber se o exame endoscópico é doloroso. A resposta depende de vários fatores, incluindo o tipo de exame, a sensibilidade individual e a utilização de sedação.
Na endoscopia digestiva alta, o desconforto está associado à passagem do endoscópio pela garganta, podendo provocar náuseas ou sensação de falta de ar. Apesar de não ser, em regra, um exame doloroso, pode causar incómodo. Já a colonoscopia pode causar cólicas ou sensação de distensão abdominal, sobretudo em doentes com antecedentes de cirurgia abdominal.
A sedação permite minimizar este desconforto e é uma prática recomendada, desde que clinicamente viável e disponível. O objetivo é assegurar uma experiência tranquila e segura, favorecendo a qualidade do exame e o conforto do doente.
A sedação é segura?
Persistem receios quanto à segurança da sedação, nomeadamente a ideia de que “é mais arriscado estar a dormir”. Esta perceção, frequentemente baseada em relatos informais, carece de fundamento clínico.
A sedação, quando realizada por profissionais qualificados e em ambiente controlado, é segura e monitorizada continuamente. Um endoscopista experiente consegue reconhecer sinais precoces de risco através da técnica e da visualização direta, sem ser necessário o alarme dado pela dor para prevenir complicações.
É fundamental esclarecer que o consentimento informado inclui sempre a explicação sobre os riscos e benefícios da sedação, adaptada ao perfil clínico de cada doente.
A preparação intestinal continua a ser um desafio?
A preparação intestinal é, por vezes, encarada como a parte mais difícil do processo, especialmente no caso da colonoscopia. No entanto, as soluções atuais evoluíram significativamente.
Existem preparações com menor volume, sabores mais toleráveis e instruções mais claras. O objetivo mantém-se: obter uma limpeza eficaz do intestino para garantir uma visualização adequada. A escolha do tipo de preparação deve ser adaptada ao histórico e tolerância do doente.
É importante desmistificar a ideia de que “se sofre imenso” com a preparação. A educação prévia e a personalização do regime são fatores-chave para melhorar a experiência do doente.
E a flora intestinal? Fica comprometida?
Uma questão frequente diz respeito ao impacto da preparação intestinal no microbioma intestinal. Ao contrário dos antibióticos, que alteram a composição microbiana, a preparação tem um efeito essencialmente mecânico de lavagem, e não de descontaminação.
A microbiota intestinal recupera rapidamente após o exame, e não existe recomendação formal para a toma sistemática de probióticos após a colonoscopia. A reposição da flora ocorre naturalmente, sem necessidade de intervenção específica na maioria dos casos.
A importância do rastreio mesmo sem sintomas
Outro mito persistente é a ideia de que só se deve realizar exames endoscópicos quando há sintomas. De facto, os programas de rastreio visam precisamente a deteção precoce de lesões em pessoas assintomáticas.
No caso do cancro do cólon e reto, por exemplo, a remoção de pólipos antes da sua transformação maligna pode evitar o desenvolvimento da doença. A colonoscopia permite diagnosticar e tratar lesões precursoras, sendo um dos pilares da prevenção.
A explicação clara do conceito de rastreio é essencial para aumentar a adesão da população, conforme preconizado pelos programas nacionais.
Endoscopia terapêutica: mais do que um exame diagnóstico
É frequente que os doentes associem a endoscopia apenas à componente diagnóstica. No entanto, a vertente terapêutica tem vindo a ganhar relevo. A remoção de pólipos, o tratamento de lesões vasculares ou a dilatação de estenoses são alguns exemplos de intervenções realizadas por via endoscópica.
Estes procedimentos, minimamente invasivos, permitem evitar cirurgias convencionais e reduzir o tempo de recuperação, com evidente benefício clínico e funcional para o doente.
O que o doente deve saber antes do exame
Uma comunicação eficaz entre o médico e o doente é essencial para garantir uma experiência segura e esclarecida. O doente deve receber informação escrita sobre:
- A indicação do exame e o seu objetivo;
- A preparação necessária (jejum, suspensão de medicação, dieta);
- As condições de segurança associadas à sedação;
- A possibilidade de serem colhidas biópsias;
- Os cuidados após o exame, especialmente em caso de sedação.
A entrega de documentação e a possibilidade de colocar dúvidas contribuem para um processo de decisão partilhado e para a melhoria da literacia em saúde.
Conclusão
A endoscopia digestiva é uma ferramenta essencial na prevenção, diagnóstico e tratamento de diversas doenças do aparelho digestivo. A desconstrução de mitos e a promoção da literacia em saúde são passos fundamentais para melhorar a aceitação e adesão da população aos exames.
A articulação entre a Medicina Geral e Familiar e a Gastrenterologia é determinante para o sucesso desta estratégia, reforçando a confiança dos doentes e garantindo decisões clínicas mais informadas e eficazes.
agosto 2025